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A Varanda do Frangipani

 

O livro de Mia Couto, A Varanda do Frangipani, Cia das Letras, 2007, 4ª reimpressão, apresenta características de um romance curto, aproximadamente 150 páginas divididas em 15 capítulos.

 

O morto não sepultado?

O texto inicia com a narrativa facetada em memórias. Sim, memória pois o personagem é vivido por um corpo que repousa na terra que o cobre, somente a lembrança (memória) lhe concede a voz narrativa. Mia Couto, como em outros livros seus, constrói a gênese de seu personagem fundamentada nas adjacências de seu território. Ermelindo Mucanga, personagem central do romance, exercia o ofício de carpinteiro na Fortaleza de São Nicolau - Fortaleza portuguesa-, instalada na colonia moçambicana. Mucanga morrera na véspera da libertação de sua terra natal, sendo enterrado nos arredores do Forte junto a uma frangipaneira. Ainda nesse capítulo, o leitor perceber que a varanda do frangipani possui memórias bem vivas, tais como as memórias das guerras, dos escravos, etc.


No fim do tempo colonial, após a guerra, existe a intenção de desenterrar os restos mortais de Mucanga para coroar sua imagem como a de um herói, de seu povo, de sua raça, tribo e região. Cabe aqui uma observação que o texto implica: Mucanga não fora amado quando vivo, por que agora lhe ultrajariam o corpo após morte com intenções esmerilhadas em interesses?


Mucanga é colocutor de um Pangolim (um animal que se parece um tatu) e a trama desenvolve-se entre diálogos de Mucanga com o Pangolim, reavivando-se assim a memória do morto. O primeiro capítulo nos deixa uma pergunta: Mucanga necessitaria reencarnar para morrer de vez? (há uma reflexão sobre o que é a morte para o personagem). Encerra-se com a conclusão: Mucanga possuía o sonho de ser enterrado conforme sua crença.


Izidine Nalta (policial), é um personagem que passa a ser "habitado" por Ermelindo Macunga em todos os seus atos, crenças, etc. Durante a guerra, um asilo esteve isolado do resto do País, agora passa a ser cenário de uma trama que envolve a morte de Excelêncio (outro personagem do romance). O papel de Izidine Nalta é justamente o de investigar o sumiço de Excelêncio através de interrogatórios dos velhos que moram em um asilo e com anotações em um caderno. Se observa, então, a solidão presente nas falas dos derradeiros moradores do asilo.


No decorrer da investigação que se dá dentro do asilo surgem historietas, as "invenções" dos fatos passam a confundir o policial Izidine. A história é um tecido costurado em retalhos, esta é uma frase que cabe ao texto. Mia Couto crava no texto o personagem de Navaia Caetano, com suas estórias fantasiosas, tornando, com isso, o asilo um local de fuga da tristeza, uma referência à brevidade da vida. Caetano sofreu de amadurecimento precoce, de fome... o antagonismo do velho em ser criança e estar na iminência de morrer.


O texto que fala as dores de ontem


Descrever todo o romance, tal como ele é, seria afrontar o leitor que busca descobrir todos os passos por si mesmo, porém, cabe minha interpretação sobre a leitura que fiz do livro.


Mia Couto, atrevo-me a dizer, transforma o modo de se pensar o que é regional. O livro é carregado de informações que nos levam à Moçambique colonial, a um país cercado de dor e prazer. A presença portuguesa no processo de colonização naquele país deixou marcas, algumas profundas e dolorosas, outras agradáveis, porém são as dores que nos marcam e as alegrias que nos sustentam, e isso se percebe no livro. Mucunga é o homem africano que desviveu a vida que merecia ter vivido, e agora, morto, lhe ofereciam o que em vida lhe foi negado: SER! Sim, ser. Ser não apenas um escravo, não apenas um serviçal, não apenas um homem inferior. Ser um homem de sonhos, um homem de feitiços aceitos, de língua entendida e representada, ser um homem livre. Os elementos das crenças moçambicanas fazem parte da construção, tanto do personagem como do enredo; o autor faz com maestria a analogia do lugar com a velhice. Percebamos: o ontem é um passado manchado, não por desonra, mas pelo não reconhecimento da glória de um lugar. Envelhece um modo de se enxergar a moçambique colonial, envelhece a perda da identidade que a colonização proporcionou a alguns habitantes, no entanto a transformação por etapas, ainda que vagarosas, são partes da construção de uma nova moçambique, de um novo povo - aqueles que herdaram e continuarão a árdua missão de manter aquilo que a guerra nos rouba, a identidade.


A vida é vista como miragem por alguns personagens. O velho Caetano se põe, certos momentos, como miragem; Caetano desconfia que Izidine seja miragem - pois era um homem habitado por outro homem (Mucanga) -. O drama psicológico que a guerra deixou nos personagens levam a essa perda de identidade e o que lhes resta de mais valioso é a memória, pois esta a guerra não é capaz de tirar.


A mitopoesia molda a linguagem regional de Mia Couto, contudo, o romance, nem de longe, pode ser considerado unicamente regional, também há de se encarar o livro como uma obra literatura universal. Nada mais universal que a memória, que a guerra, que a luta que o homem trava dentro de si.

Ermelindo tem seu destino final como uma árvore, florida e bem cuidada, ao que fica a frase: "daqui em diante vou dormir mais quieto que a morte".

 

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