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O TEMPO É UMA FOLHA QUE SANGRA*


DENTRO DE UM PEIXE

 

Para que as personagens possam viver, devem contar[1] aponta Todorov. O verbo contar, empregado no romance Dentro de um peixe, vai além de sua gramática ou do seu próprio significado. Contar, onde os dicionários apontam “relatar enredo ou detalhes”, também ultrapassa a linguagem matemática de soma e sua relação de correspondência biunívoca.

Pude acompanhar algumas releituras do livro de Marcos Samuel Costa, Dentro de um peixe, publicadas na internet, onde a compreensão dos leitores, de forma unânime, até então, firma-se no registro do aparente. O leitor, talvez envolvido pelo texto e sua fruição, acaba por entregar-se de forma afetiva ao que os mesmos classificam como linguagem poética. Possivelmente este seja o logos aceito e designado como expoente da obra literária do autor. Todavia a percepção do texto vai muito além da sentença da linguagem poética, pois averigua dentro de sua construção a questão do sentido.

Lido, relido e (re)interpretado – a primeira interpretação da obra é sempre a do autor sobre a realidade – Dentro de um peixe apresenta na linguagem e em todos os aspectos visuais do texto o que Hegel chama de “arrepio do sentido”, e aqui cabe a compressão do regime da polissemia, no sentido lato do termo, das sociedades que aceitam a linguagem mítica[2]. O texto apresenta a relação dos fenômenos naturais e humanos: aos bosques, às florestas, aos rios, tudo é dotado de sentido, e, por conseguinte, a natureza inteira se mostra ao homem, mostra-se ao homem mítico. [O camarão, que enchia o paneiro, comia partes de nossas vidas que sabia se puir na solidão.]. A determinação do sentido poético do texto não deverá excluir uma outra característica intrínseca da obra: o texto fantástico. Dentro de um peixe vincula na construção narrativa uma relação com o sobrenatural: [ O grande pássaro nos braços de uma árvore estava deitado sobre seu ninho feito com vários galhos secos (...) Meu coração respingou algo. O pássaro desceu, virou do tamanho de uma magia. Grande como voos. Suas penas pareciam pequenos pontos de luz, brilhavam. E como Jacó, ao lutar com um anjo, eu lutava contra aquele pássaro (...). Eu queria conhecer o segredo do princípio.]. A ideia do sonho conduz, por vezes, um narrador sonâmbulo, que ora exprime na linguagem a clareza da fala, ora a abertura para um texto subjetivo onde o leitor, ao aceitar o desafio, atravessará por linhas abertas à várias interpretações.

Outra observação que cabe ao texto é a manipulação, o jogo intencionado do autor na construção de sua personagem-narrador. Marcos Samuel Costa talvez seja um ilusionista, uma farsa. Um homem que esconde o riso atrás do choro. Nesta ocasião, o leitor mais emotivo talvez não repare na característica anônima de quem narra e de quem se mostra no texto, isso pode se dar pelo uso dos elementos pertencentes à linguagem poética no discurso do narrador-personagem e sua subjetividade. A personagem, que com delicadeza transfere para o leitor suas sensações e dramas, dissimula, com discrição, tudo o que lhe é exterior através da palavra. A língua, a palavra são quase tudo na vida humana, sua essência se resume à expressão do mundo individual do falante. [3] A personagem “anônima” dá nomes, constrói sentidos e exporta ao leitor tudo o que sobrepõe sua realidade. Minha alusão ao anônimo, o leitor talvez discorde, se faz após a breve análise das características psicológicas e identitária da personagem – isto talvez fique para um próximo ensaio sobre as caraterísticas gerais da personagem de Marcos Samuel Costa –, que externaliza o mundo através da subjetividade do eu, e dispersa traços de sua personalidade no corpo sensível dos signos. A condição anônima do eu fictício talvez seja uma premissa consciente do autor para deslocar o leitor àquilo que ele (autor) quer que o leitor sinta. Nada num texto é por acaso. Todavia a condição “anônima” da personagem, se observada pela gênese do discurso que esta constitui, pode ser facilmente negada pelas camadas sensoriais e factuais que constrói a personagem narra, mas isto requer uma análise excessiva do significado e significante.

[O lençol branco ganhava vida. Como vulto. Pedaço de nuvem mais baixo. Às mãos de algo sagrado. Os pensamentos dos peixes vivificados na carne e penugem. Isso foi na criação.]. No enunciado acima vemos o narrador-personagem dando vida ao enredo. Nas palavras de Antonio Candido as personagens vivem o enredo e as ideias, e os torna vivos. A criação literária repousa sobre o paradoxo: como pode existir o que não existe? Pode uma ficção ser? O problema da verossimilhança no romance, não só em Dentro de um peixe, mas todos os outros, depende da possibilidade de um ser fictício – que aqui designei como personagem anônima –, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial[4]. Destaco que a personagem não tem rosto, mas tem voz que tudo alcança, constrói e destrói. A mesma personagem-narradora exclui a cronologia de seu enredo, o que torna o texto ainda mais subjetivo, limita-se, ou aplica-se, à construção do tempo psicológico, tempo este que o leitor não verá passar, mas se dará conta que chegou ao final, ou voltou para o início.

A leitura do romance em destaque, e de qualquer outro texto, deverá fazer-se de duas idas: a primeira, onde o leitor deixará sua alma estendida diante do primeiro contato que lhe encante, e a segunda, uma ida metodológica do espírito, que lhe permitirá voltar com o resultado da busca pelo significado do texto. Dentro de um peixe, da visão deste que escreve, é um texto que mostra que a beleza está no se perder.

 

* Trecho extraído do primeiro capítulo do livro.

[1] As estruturas narrativas /Tzvetan Todorov; [tradução Leyla Perrone-Moisés]. São Paulo : Perspectiva, 2013. – (Debates; 14/dirigida por J. Guinsburg)

[2] Inéditos, I : teoria / Roland Barthes ; tradução Ivone Castilho Benedetti. – São Paulo : Martins Fontes, 2004. – (Coleção Roland Barthes)

[3] Os gêneros do discurso / Mikhail Bakhtin; organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. – São Paulo : Editora 34, 2016 (1ª Edição). 176 p.

[4] A Personagem de ficção / Antonio Candido... [et. Al.]. – São Paulo: Perspectiva, 2018. – (Debates ; 1 / dirigida por J. Guinsburg)

2. reimpr. da 13. ed. de 2014

Outros autores: Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes

Bibliografia.

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