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O RELÓGIO MAL-ASSOMBRADO


O RELÓGIO MAL-ASSOMBRADO / ARMANDO ALVES FILHO; [Ilustração Flor di Maria Fontelles]. - 1.ed. - Belém - PA: Paka-Tatu, 2017

26p.

Ficção Infantojuvenil.

 

Decidi que no lugar de uma resenha o livro merecia um texto literário (sic).

 

O ESCREVINHADOR DE SONHOS


Para Armando Alves


O cursor piscava na tela do computador. Surgiram as primeiras letras, embriagadas de infância, brindaram a recordação. Na outra linha, com letra maiúscula, Armando iniciou um voo, esticou as asas da imaginação, mirou no horizonte e decolou, vroooom! Viajava outro parágrafo à ilha da inventividade; o parágrafo ia organizado em página numerada, respeitando as ordens gramaticais: NÃO SE SEPARA SUJEITO DE PREDICADO!

As palavras iam chegando, uma a uma, na ilha da fantasia; cumprimentavam-se antes de formar uma frase. “O relógio” cumprimentara o “mal-assombrado”, e assim formaram o título do voo: O RELÓGIO MAL-ASSOMBRADO. Armando apertava os olhos miúdos, lhe agradava aquele encontro. As palavras saíam, voavam pela barba esbranquiçada do escrevinhador, deslizavam pelas dunas formadas por seus cabelos brancos, diziam que eram feitos de nuvens, e ali se amontoavam esperando a vez de embarcarem.

“O casarão na Estrada da Cruz das Almas” abriu o primeiro parágrafo; dali não arredaria pé, pulou dos cabelos de nuvens de Armando para a ponta de seus dedos; fora cumprimentado pelo “relógio mal-assombrado” e juntos prometeram construir uma bela história.

Armando recordou-se de seu tempo de criança; em verdade, convocou o menino que ressonava por trás de sua barba esbranquiçada e deu-lhe a missão de ajudá-lo. O escrevinhador de sonhos fazia-se, agora, inteiro. O menino relatou-lhe episódios nunca esquecidos.

— Aí vem uma recordação, Armando – disse o menino –, prepare-se!

Chegava a imagem de seu Gonçalves, proprietário do casarão na Estrada da Cruz das Almas. Todavia, seu Gonçalves era proprietário apenas do prédio, as palavras “casarão na Estrada da Cruz das almas” eram de Armando.

As palavras decidiram dar ao “relógio mal-assombrado” o protagonismo da fantasia. Porém, o menino julgou interessante dar uns sustos na história. “Uuu! Uhu!” Uma rasga-mortalha pousara na cumeeira do casarão. Riram-se, espantados, o escrevinhador e o menino.

— Essa foi de assustar!

— Arrepiou os cabelos da nuca, tudinho!

A viagem durou dias, não sei ao certo quanto tempo. Os voos eram feitos em escala, o check-in de embarque fora feito com antecedência, nenhuma palavra perderia a viagem. Ao término da excursão, viram, o menino e o escrevinhador, que as palavras precisariam de imagem.

— O susto tem que ser uma arte, menino.

— Que a arte seja um espanto, Armando.

Tempos depois, pousaram na ilha do “RELÓGIO MAL-ASSOMBRADO” uns desenhos de traços únicos. As palavras sofreram de amor à primeira tinta. Chegaram a “coruja”, o “martelo”, o “defunto” e o “relógio”. Casaram-se. As palavras solteiras sofreram de ciúmes. Por que deixá-las sem imagens? Perguntavam-se se um dia haveriam de ter uma imagem como par. Logo desfez-se o ressentimento. Algumas palavras eram tão importantes que não careciam de imagem para compor a imaginação de quem as lesse; orgulharam-se. Armando era um escrevinhador de sonhos, dera a elas, palavras solteiras, a alegria de ilustrar com suas letras a fantasia do leitor.


Belém|2017

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